Nesta série de textos, cada capítulo proporciona uma viagem por cada um dos oito temas da Campanha tODxS pela Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global, começando pelo mundo e acabando na Guiné-Bissau, começando com um ponto de situação global e acabando com o trabalho, atual e imediato, de tantos no progresso e desenvolvimento desse país.

Em 1996, o Comité Delors propôs quatro pilares de educação para a UNESCO: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. Em conjunto, estes pilares definem um quadro para a promoção de valores humanísticos, um espírito de livre investigação científica, e arte e expressão criativa. Destas e de outras formas, a oferta de educação promove a inclusão das pessoas na sociedade e, também, no mundo como um todo.
Um dos veículos mais poderosos para a inclusão da pessoa, através dos quatro tipos de aprendizagem delineados pelo Comité Delors, é a literacia. A literacia coloca a pessoa em contacto com diversas perspetivas, com uma polifonia de experiências que moldam a forma como raciocina sobre si própria e o mundo em torno dela. Proporciona as qualificações para trabalharmos numa maior variedade de empregos, em funções profissionais criativas, e dá-nos as ferramentas para participarmos como cidadãos na vida pública, para debater, construir e, assim, pertencer a uma comunidade política. Ajuda a evitar, individual e coletivamente, a pobreza multidimensional.
Em contrapartida, o analfabetismo é um dos indicadores mais profundos de exclusão social. Pode ser visto, especialmente em sociedades com elevadas taxas de alfabetização, como uma marca de vergonha. Aqueles que não sabem ler tentam, a grande custo, esconder o seu analfabetismo, pedindo a outros que leiam por eles porque “perderam os óculos de leitura”, ou que expliquem formulários, porque “já não conseguem ver tão bem”. Na maioria dos casos, a alfabetização nunca foi uma opção viável, com muitos forçados a substituir a escola pelo trabalho a uma idade muito precoce, antes da conclusão do ensino primário.
A persistência de analfabetismo, mesmo em sociedades com economias desenvolvidas, sugere que as agências públicas não estão a cumprir o seu mandato mais básico: a prestação de serviços públicos universal e cabalmente. É verdade que, a longo prazo, o mundo tem visto uma enorme redução na taxa de analfabetismo, com uma pessoa analfabeta em cada dez hoje, comparado a um pouco menos de nove pessoas em dez em 1820. Mas a redução da taxa de analfabetismo deve-se muitas vezes à substituição intergeracional, como é o caso no contexto português, com muito pouco feito para erradicar o analfabetismo em populações mais velhas, que não puderam desfrutar das oportunidades educativas atuais. A redução da taxa de analfabetismo é, por isso, um desafio atual; é, por isso, um combate para a dignidade das pessoas que o escondem, que o consideram uma marca de vergonha. Sem este progresso, sem a expansão do mais básico cuidado a tais populações inferiorizadas e marginalizadas, não poderemos cumprir a integração, holística e saudável, de cada pessoa na sociedade, muito menos a promoção dos quatro pilares da UNESCO de educação ao longo da vida.
A importância fundamental da literacia está completamente reconhecida na Constituição da República da Guiné-Bissau, que, entre outras responsabilidades constituintes, assume como prioritária a promoção da educação. Nas palavras do 16º artigo, “O Estado considera a liquidação do analfabetismo como uma tarefa fundamental.”
A alfabetização tem, de facto, progredido enormemente na Guiné-Bissau, com 53,9% da população alfabetizada em 2022, comparada com apenas 20% em 1979. Os dados suscitam, no entanto, graves preocupações sobre a velocidade da alfabetização da sociedade, a sustentabilidade da tendência geral de alfabetização, e a inclusão das mulheres neste processo. Apesar do progresso, não deixa de ser o caso que quase metade da população da Guiné-Bissau permanece analfabeta, proporção que tem vindo a aumentar desde 2015, quando “apenas” 40,2% da população era analfabeta. Além disso, o recenseamento geral da população e habitação da Guiné-Bissau de 2009 mostrou que 62,1% das mulheres não sabia ler, enquanto a taxa para homens era de 34,1%. Mesmo entre os grupos mais recentemente educados, entre os 16 e os 25 anos, só 62,5% de mulheres jovens são alfabetizadas, comparado a 75,3% de homens jovens. Esta gritante disparidade de género mostra-nos que o fenómeno do analfabetismo está intrinsecamente ligado ao leque extremamente limitado de oportunidades de que as mulheres podem usufruir em sociedades tradicionalmente patriarcais.
Para colmatar esta desigualdade, a Direção Geral da Alfabetização e Educação Não Formal (DGAENF) tem vindo a oferecer programas de educação para milhares de adultos, a maior parte de qual são mulheres. Mas a proporção de adultos a qual estes programas chegam é muito baixa, fazendo com que o analfabetismo permaneça um problema intergeracional, um problema de género, um problema de pobreza, com profundas ramificações para o desenvolvimento sustentável do país.
Para além de educação e formação de adultos, a oferta de educação continua a ser limitada e pouco universal, na sua cobertura, para jovens guineenses. De acordo com a UNICEF, 87.000 crianças não completaram o ensino básico, 32.000 não completaram o 1º ciclo do secundário, e 40.000 não completaram o secundário. A educação é, no entanto, amplamente valorizada, quer em contextos de pobreza ou de afluência material. Estas elevadíssimas taxas de abandono significam que muitos pais estão numa situação financeira precária, em que simplesmente não podem sacrificar o rendimento adicional do trabalho das suas crianças. Como os custos de educação primária já são muito baixos na Guiné-Bissau, o que é preciso para aumentar a escolarização das crianças mais pobres é a instituição de programas que estimulem o rendimento das famílias mais pobres, que façam com que já não seja necessário para elas sacrificarem a educação das crianças para garantirem o sustento de hoje. Esta estratégia, primeiro implementada no México, em 1992, com o programa PROGRESA, tem tido efeitos muito positivos nos vários países que a implementaram de seguida, como o Malawi e Marrocos. É, como afirmam os prémios Nobel Abhijit Banerjee e Esther Duflo no seu livro Poor Economics (2011, capítulo 4), uma das mais eficazes maneiras de promover a escolarização das crianças mais pobres de países em desenvolvimento.
Mas mesmo a implementação destas soluções, com reconhecido sucesso internacional, é dificultada por pressões orçamentais e fragilidades institucionais. Saiba mais sobre estes desafios, tanto os estruturais como os quotidianos, com, Mamadu Bori Baldé e Edson Incopté.
Entrevista Mamadu Bori Baldé – Estado da Educação na Guiné-Bissau
Entrevista Edson Incopté – Falta de investimento na Educação
Para saber mais sobre este tema consulte a nossa ficha de ação pedagógica aqui.
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Banerjee, A. & Duflo, E. (2011), Poor Economics, Penguin.